quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Prefácio ao Novo Testamento por Martinho Lutero

Prefácio ao Novo Testamento
por
Martinho Lutero



“Das Neue Testament Deustsch, 1522. Vorrede”.
Ao retornar da assembléia imperial de Worms, em fins de abril de 1521, Lutero foi “seqüestrado” por cavaleiros do duque eleitor Frederico da Saxônia e posto em segurança no Wartburgo, a poucos quilômetros de Eisenach. Como herege excomungado pelo papa (bula de 4 de janeiro de 1521) e proscrito pelo imperador (édito de 26 de maio de 1521), corria perigo de vida. Convinha ao eleitor que permanecesse “em lugar incerto e ignorado” até Segunda ordem.
Durante os meses de reclusão, de maio de 1521 a março de 1522, Lutero desenvolveu uma atividade literária espantosa. Publicou comentários aos Salmos 68, 22 e 37, ao cântico de Maria, conhecido por Magnificat (Lucas 1.46-55) e à história dos dez leprosos. Lançou obras polêmicas contra Jerônimo Emser de Leipzig, (1478-1527), sobre o sacerdócio; contra o papa, negando o dever da confissão, e contra o arcebispo Alberto da Mongúcia sobre as indulgências. Refutou, em latim, a justificativa do professor João Latromo (ca. 1475-1544) à condenação de teses luteranas pela universidade de Lovenha ( Rationis Latomianae Confutatio ). Traduziu para o alemão e publicou a refutação de Filipe Melanchton ao veredicto da universidade de Paris. Começou a redigir uma exposição sistemática das perícopes ou leituras dos evangelhos e das epístolas selecionadas para os cultos dominicais. Essa Postilla deveria servir aos pregadores na preparação de sermões e aos chefes de família no culto doméstico. A obra principal do período foi, porém, a tradução do Novo Testamento para o alemão.
Ocorre que, em Wittemberg, pessoas ligadas a Lutero estavam fazendo reformas no culto tradicional que ele próprio julgava inconveniente ou precipitadas. Num encontro secreto na cidade, em princípios de dezembro, Filipe Melanchton e outros colegas insistiram em que Lutero traduzisse o Novo Testamento. Era preciso dar ao povo o evangelho, em linguagem acessível, para todos poderem compreender e promover a causa evangélica.
De volta ao castelo, Lutero procurou corresponder ao pedido, apesar das dificuldades. Dispunha de poucos recursos, além dos essenciais: a Vulgata (versão latina de uso corrente), tradução da Vulgata em alemão, edição do texto grego por Erasmo de Roterdã (2ª edição em 1519). Não podia aconselhar-se com os colegas. Pretendia uma tradução que aos alemães falasse mais que a Vulgata aos latinos. Não obstante concluiu a tradução em cerca de onze semanas (meados de dezembro a fins de fevereiro). Depois de retornar a Wittemberg nos primeiros dias de março, Lutero revisou a tradução com o auxílio de Melanchton e outros colegas. À medida que concluía alguma parte, encaminhava o texto aos impressores. A obra foi lançada no mercado por volta de 21 de dezembro de 1520.
A aceitação foi tão grande, que em dezembro foi lançada a segunda edição, revisada. No ducado da Saxônia, na Bavária, Áustria e outros domínios, a obra foi proibida. Críticos da tradução, como Jerônimo Emser e João Dietenberger, valeram-se dela para publicar traduções próprias, aquele do Novo Testamento em 1527, e este da Bíblia em 1534. Outro adversário, João Cochlaeus, criticava que pessoas incultas, de tanto ler a tradução luterana, ousavam discutir com sacerdotes, monges, mestres e doutores. Depois de 1522, o Novo Testamento sofreu várias revisões, uma delas em 1530. A equipe de trabalho liderada por Lutero traduziu, gradualmente, o Antigo Testamento. A Bíblia completa foi lançada em 1534. Ao morrer, em 1546, Lutero estava empenhado numa revisão substancial, que os colegas completaram. Lutero redigiu prefácios ao Novo Testamento e às epístolas para corrigir distorções veiculadas em prefácios correntes e assegurar leitura proveitosa.
* * *
O mais certo e razoável seria que este livro saísse sem qualquer prefácio e nome estranho, e apresentasse apenas seu próprio nome e dizeres. Entrementes, porém, há uma série de interpretações e prefácios a desorientar a mente dos cristãos, de forma a quase não mais se saber o que significa evangelho ou lei, Novo ou Antigo Testamento. Por isso a necessidade exige uma orientação e prefácio, para que a pessoa simples seja conduzida do seu engano anterior para o caminho correto e receba instrução acerca do que ela deve levar em consideração neste livro. Assim não procurará mandamento e lei ao estar procurando evangelho e promessa de Deus.
Por isso se deve saber, em primeiro lugar, que é preciso abandonar a idéia errônea de que haveria quatro evangelhos e apenas quatro evangelistas, e rejeitar por inteiro o que muitos fazem: dividir os livros do Novo Testamento em livros legais, históricos, proféticos e sapienciais, acreditando com isso (não sei como) fazer o Novo Testamento igual ao Antigo; na verdade é preciso observar o seguinte: O Antigo Testamento é um livro em que estão escritos a lei e o mandamento de Deus, ao lado de histórias tanto daqueles que os observaram, como dos que não os observaram. O Novo Testamento [por seu lado] é um livro em que estão escritos o evangelho e a promessa de Deus, bem como ainda a história de ambos: dos que nisto crêem e dos que não crêem. Por conseguinte, não deve haver dúvida de que há apenas um evangelho, assim como há apenas um livro do Novo Testamento e somente uma fé e um único Deus que e faz a promessa.
isso porque evangelho é uma palavra grega que quer dizer “boa mensagem”, “boa notícia”, “boa nova”, “bom anúncio”, de que se canta, fala e se alegra. Por exemplo: Quando Davi subjugou o gigante Golias, o povo judeu recebeu a boa notícia e novidade consoladora de que seu inimigo terrível tinha sido morto e eles [agora] estavam salvos, levados à alegria e paz, motivo por que cantaram e dançaram e ficaram alegres. Da mesma forma este evangelho de Deus e este Novo Testamento é boa nova e notícia, que os apóstolos fizeram ressoar em todo o mundo: A boa notícia de um bom Davi, que lutou com o pecado, a morte e o diabo e os subjugou; assim salvou, justificou, vivificou e beatificou, sem que o merecessem, a todos aqueles que estavam presos em pecados, atormentados pela morte, subjugados pelo diabo; dessa forma os levou de volta para casa, para a paz e para Deus, motivo pelo qual eles cantam, dão graças a Deus, louvam e estão alegres eternamente, desde que o creiam firmemente e permaneçam na fé.
Semelhante proclamação e notícia consoladora, ou novidade evangélica e divina, também é chamada de “novo testamento”. E isso pela seguinte razão: Um homem que está por morrer estabelece como sua propriedade será distribuída entre os herdeiros por ele designados, após a sua morte. A isso se chama testamento. Assim também Cristo ordenou e estabeleceu que semelhante evangelho fosse proclamado após sua morte em todo o mundo, assim entregando a todos que crêem todo o seu bem, isto é: sua vida, com a qual tragou a morte; sua justiça, com a qual extermina o pecado; sua beatitude, com a qual superou a condenação eterna. A pobre pessoa humana, enredada em pecados, morte e a caminho do inferno, nada pode ouvir de mais consolador que essa preciosa, querida mensagem de Cristo; seu coração tem que rir do mais profundo íntimo e se alegrar, ao crer que isso seja verdade.
Para fortalecer essa fé, Deus prometeu, por diversas vezes, este seu evangelho e testamento no Antigo Testamento através dos profetas, como Paulo o diz em Romanos 1.11s: “Fui separado para o evangelho de Deus, o qual foi por Deus outrora prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi”, etc. E, para mencionarmos várias passagens, ele o prometeu primeiro ao dizer à serpente em Gênesis 3.15: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” Cristo é a descendência dessa mulher que esmagou a cabeça do diabo, isto é, o pecado, a morte, o inferno e toda a sua força. Porque, sem essa descendência, pessoa alguma pode escapar do pecado, da morte, do inferno.
Da mesma forma ele o prometeu em Gênesis 22.18 a Abraão: “Em tua descendência serão benditas todas as nações da terra.” Cristo é a descendência de Abraão, diz Paulo em Gálatas 3.16. Ele abençoou a toda a terra através do evangelho. Pois onde Cristo não está, ali ainda existe a maldição que caiu sobre Adão e seus filhos devido a seu pecado, de forma a serem forçosamente culpados e pertencentes ao pecado, à morte e ao inferno, Opondo-se à maldição, o evangelho agora abençoa todo o mundo através de seu chamado público: Quem crê nessa descendência de Abraão, será abençoado, estará livre de pecado, morte e inferno, e está justificado, vivo e salvo eternamente, como o diz o próprio Cristo em João 11.26: “Quem crê em mim, jamais morrerá.”
Da mesma forma ele o prometeu a Davi em 2 Samuel 7.12.ss, ao dizer: “Hei de despertar tua descendência após ti, ela me edificará uma casa, e eu firmarei seu reino eternamente Quero ser seu pai, e ele será meu filho” etc. Esse é o reino de Cristo, do qual fala o evangelho: um reino eterno, da vida, da bem-aventurança e justiça, para dentro do qual virão da cadeia do pecado e da morte todos os que crêem. Semelhantes promessas do evangelho ainda há outras, como por exemplo Miquéias 5.2: “E ti, Belém, és pequena entre as cidades de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel” , e ainda Oséias 13.14: “Eu os resgatarei das mãos da morte, da morte, os salvarei.”
Assim vemos agora que não há mais do que um evangelho, bem como apenas um Cristo, isso porque “evangelho” não é nem pode ser outra coisa senão uma pregação de Cristo, filho de Deus e de Davi, verdadeiro Deus e homem, que por nós, com sua morte e ressurreição, superou o pecado, a morte e o inferno de todos os que nele crêem. De sorte que o evangelho pode constar de uma fala curta ou longa, podendo um dizê-lo em palavras breves e outro, de norma longa. Em pormenores o descreve aquele que descreve muitas obras  e palavras de Cristo, como o fazem os quatro evangelistas. De forma breve, porém, o descreve aquele que não fala das obras de Cristo, mas indica com poucas como ele, através do morrer e ressurgir superou pecado, morte e inferno para aqueles que nele crêem. Assim o fazem Pedro e Paulo.
Por isso cuide que não faça de Cristo um Moisés, nem do evangelho uma lei ou um livro de doutrina como aconteceu até agora e dão a entender diversos prefácios da versão Vulgata, de São Jerônimo. Pois o evangelho, no fundo, não exige nossa obra, com a qual nos pudéssemos formar retos e salvos. Antes ele condena semelhantes obras e exige apenas fé em Cristo, que venceu para nós o pecado, a morte e o inferno, tornado-nos retos, vivificados e bem-aventurados. E não por nossas obras, mas por suas próprias obras: morte e sofrimento, para que aceitemos sua morte e vitória como se nós mesmos o tivéssemos realizado.
Mas acontece que, no evangelho, Cristo, e além dele Pedro e Paulo fornecem muita lei e doutrina e interpretam a lei. Deve-se ter isso em tão alta conta como todas as outras obras e benefícios de Cristo. Conhecer suas obras e a história de sua vida ainda não significa conhecer o evangelho correto, pois com isso você ainda não sabe que ele superou pecado, morte e diabo. Assim também ainda não significa conhecer o evangelho, se você sabe essa doutrina e mandamento, mas apenas quando vem aquela voz que diz: Cristo é sua propriedade, com vida, obras, morte, ressurreição e tudo que ele é, tem, faz e consegue.
Portanto também enxergamos que ele não fica insistindo, mas convida amavelmente e fala: “Bem-aventurados são os pobres” etc. E os apóstolos utilizam a palavra: “eu exorto”, “eu suplico”, “eu peço”. Assim se vê em toda parte que o evangelho não é um livro de leis, e sim apenas uma pregação dos benefícios de Cristo, a nós apresentados e concedidos, assim o cremos. Moisés, porém, em seus livros instiga, insiste, ameaça, bate e castiga cruelmente; porque ele é um escritor e instigador da lei. Daí vem que ao crente não é dada lei alguma, como o diz Paulo em 1 Timóteo 1.9; isso porque ele é justo, vivificado e salvo através da fé. E ele não tem mais necessidade de comprovar semelhante fé.
Sim, onde estiver a fé, ela não consegue se refrear, ela se comprova, irrompe e confessa e ensina esse evangelho diante das pessoas e por ele arrisca sua vida. E tudo que ela vive e faz, destina-o ao proveito do próximo, para lhe ajudar, não só que ele alcance semelhante graça, mas também no que tange o corpo, propriedade e honra, [da mesma forma] como ela vê que Cristo lhe fez, seguindo, portanto, ao exemplo de Cristo. Isso também é o que Cristo quer dizer, uma vez que em última ma análise ele não deu nenhum outro mandamento senão o amor. Nele se deveria reconhecer quem seriam seus discípulos e crentes verdadeiros; pois onde não irrompem as obras e o amor, a fé não está bem, o evangelho ainda não pegou, e Cristo ainda não foi bem reconhecido. Volte-se, portanto, para os livros do Novo Testamento e veja que os consiga ler dessa maneira.

Quais os bons e mais nobres livros do Novo Testamento
Partindo de tudo isso, você pode agora julgar e distinguir bem quais os melhores dentre todos os livros. Pois o evangelho segundo João e as epístolas de Paulo, particularmente aquela aos Romanos, e a primeira epístola de Pedro são o bom cerne e a medula dentre todos os livros. Esses deveriam perfeitamente ser os primeiros. E a cada cristão se deveria recomendar que os lesse por primeiro e com maior freqüência, familiarizando-se com eles pela leitura diária como se tosse o pão de cada dia. Pois nestes não encontrará muitas obras e feitos milagrosos de Cristo. Achará, porém, magistralmente enfatizado como a fé em Cristo supera pecado, morte e inferno e concede a vida, justiça e salvação, o que afinal representa o feitio propriamente dito do evangelho, como você ouviu acima.
Pois se jamais eu precisasse renunciar a um dos dois, às obras ou às pregações de Cristo, eu renunciaria antes às obras que às pregações. Pois as obras de nada me adiantariam. Suas palavras, porém, estas dão a vida, como ele mesmo o diz. João descreve poucas obras de Cristo, mas muitas de suas pregações, ao passo que os outros três evangelistas, inversamente, descrevem muitas de suas obras e poucas palavras suas. Por isso o Evangelho segundo João é o único evangelho bonito e certo, o principal, sendo que se lhe deve dar considerável preferência e consideração. Também as epístolas de Paulo e Pedro superam em muito os três evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas.
Em suma: o evangelho segundo João e sua primeira epístola, as epístolas de Paulo, particularmente as dirigidas aos romanos, gálatas, efésios, e a primeira epístola de Pedro, estes são os livros que lhe apresentam Cristo e lhe ensinam tudo que é necessário e bom saber, ainda que jamais visse ou ouvisse qualquer outro livro ou doutrina. Por isso a epístola de Tiago é uma epístola bem insossa, em comparação, pois ela, de qualquer forma, não tem natureza evangélica. Mas disso ainda falaremos em outros prefácios.

 

Fonte: Martinho Lutero. Pelo Evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Trad. Walter O. Schlupp. Porto Alegre: Concórdia & São Leopoldo: Sinodal, 1984. pp. 171-177.

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